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Medicina

A Jornada só começou

Normalmente, Imaginamos que após o rito de passagem do vestibular tudo vai se resolver e a vida tomara o rumo da prosperidade e alegria eterna. Mais um engano, entre tantos outros.

Contextualizando, a lista de aprovados no concurso costumava sair em janeiro, a matricula era efetuada em fevereiro e as aulas iniciavam em marco. Ou seja, menos de 2 meses para recolher acampamento e se aventurar na capital.

Imagine que, mesmo vivendo numa casa humilde, sem muitos recursos, ainda assim era o seu lar, e havia uma certa segurança, privacidade e respeito.

Subitamente estaríamos nós na selva de pedra, sem nada disso.

Assim começavam os dilemas, aonde morar?

Pagar aluguel era algo impensável e mesmo dividir apartamento, algo corriqueiro para estudantes, se mostrava fora da realidade.

Restava tentar albergues ou a Casa de Estudantes.

Candidatei-me para Casa da UFRGS, mas não fui classificado, acho que me consideraram muito rico…

O problema lentamente se tornava desesperador, mas conversando com outros estudantes, fiquei sabendo da existência de uma casa filantrópica no centro da cidade e foi para lá que dirigi minhas esperanças, e não havia muitas alternativas.

Essa casa correspondia a um antigo hotel, doado pelos seus proprietários para abrigar estudantes do mundo inteiro – sim, não eram somente brasileiros – Uma instituição auto gerenciada e sustentada pelos próprios moradores. A seleção era feita por uma comissão, que avaliava a real necessidade do candidato.

Nessa fui aceito…. Diante de um momentâneo alivio antevendo o inicio de um pesadelo.

Essa casa era um hotel em formato de “U”, com uma área central aberta e os quartos distribuídos em nichos ao longo dos braços. Cada nicho era chamado de Hall, e se estruturava com 4 ou 5 quartos duplos, eventualmente quartos individuais, um banheiro coletivo, uma pequena cozinha e muitos ratos e baratas, sim, eles faziam parte patrimonial da instituição.

Acreditem, era possível presenciar esses pequenos habitantes em toda parte, senti-los te observando mesmo à noite.

Os novatos ocupavam as vagas remanescentes nos quartos duplos, já obviamente ocupados por outros mais antigos, além dos ratos e das baratas… pulgas também competiam pelo espaço, fui descobrir mais tarde.

Não haviam muitas opções, era entrar e aceitar. Fui designado para um quarto aonde residia um senhor, com uma certa idade, pois a casa aceitava vítimas de todas a universidades da região metropolitana. Ele fazia engenharia na PUC… um senhor simpático, mas muito despreocupado com a organização e limpeza. O quarto era praticamente todo ocupado por ele, imagine que eu precisava me encaixar naquele ambiente, do jeito que estava. Além de tudo era acumulador de objetos, e me restou além da cama uma pequena mesa e um espaço na “estante” de livros.

O cheiro era bem estranho, a sujeira competia com as pulgas que saltavam do chão a olhos vistos…não estou exagerando, era possível velas gordinhas felizes e saltitantes com a nova refeição que chegava fresquinha do interior, no caso eu. Aos poucos consegui organizar e limpar um pouco o local, delimitar meu espaço com devido respeito, disciplina e ordem.

Enquanto isso, vislumbrava a troca de quarto… olhando para trás, ironicamente parece algo de Victor Frankl, salvo as devidas proporções, focando num sentido para aquilo tudo.

Sim, com o tempo era possível mudar de quarto, mas para isso se iniciava a diplomacia, algo que eu não tenho domínio.

A limpeza dos quartos era de responsabilidade dos inquilinos, assim como a limpeza das áreas comuns e banheiros. Tínhamos uma escala de limpeza semanal, mas nem sempre era respeitada. Era fácil saber quem era o responsável pela semana observando o comportamento de cada um.

Como os grupos humanos se aproximam por semelhança, logo percebíamos que alguns halls eram melhores que os outros, mas isso por conta dos próprios moradores.

Pareciam muitas vezes aquelas gangues de filmes, tinha o hall dos peruanos, dos africanos, dos filhos da PUC… enfim, com o tempo comecei a frequentar o hall do pessoal de cabo verde, pessoal muito alegre, organizado e gentil. Entendam que a diplomacia se dava por uma analise de duas vias, pois eu precisava também ser aceito.

Com o tempo liberou uma vaga nesse local, com um rapaz do Senegal, Moussa Ly, ele fazia física na PUC… foi pra lá que eu fui. Minha vida passou então a melhorar, lá havia mais respeito e organização

Moussa era (e e’) uma pessoa formidável, aprendi muito com aquele pessoal, ele era muçulmano, e todo dia colocava seu tapetinho no chão e rezava em direção a Meca. Não, não sofri atentados e nem aprendi a fazer bombas caseiras, mas certamente a prendi a respeitar as outras culturas, a entender a força e a alegria do povo africano, aprendi a gostar de Cesária Évora também, e penso que perdi a chance de aprender a falar Frances com ele, isso eu lamento muito…

Enquanto isso, o foco era ingressar nos quartos individuais, ocupados pelos mais antigos, que circulavam como pop stars pela casa. A medida que iam se formando, vagas surgiam e novas seleções eram promovidas, e os mais antigos iam subindo na escala comensal.

Outro fato interessante, como a administração era feita pelos próprios moradores, a conta de agua e luz era dividida entre todos, o gerenciamento de conflitos e seleção dos novos eram internamente organizado por nós mesmos, foi um grande aprendizado.

A composição da casa era muito heterogênea, mas haviam poucos alunos de medicina ali, eu era o único na verdade. Pessoal geralmente por estar em universidades particulares, estudava a noite e trabalhavam durante o dia.

E digamos que alguns tinham rotinas diferentes, pouco focadas na evolução universitária e adoravam confraternizações…todos os dias…sem hora para começar ou terminar…

Não preciso dizer que era terrível tentar dormir ou estudar num local aonde dezenas de pessoas com hábitos e objetivos diferentes ocupavam o mesmo espaço.

Até hoje eu estudo ou leio com musica, bem tarde da noite, pois foi a forma que encontrei para isolar a gritaria local.

Confesso que foi um pouco traumático. Lembro numa certa ocasião em que eu precisei levar comigo um bastão de madeira para pedir gentilmente um pouco de silencio de um morador que tinha um péssimo habito de não respeitar ninguém.

Sim, havia uma determinação de hora de silencio, mas poucos respeitavam.

Teria muitas historias para contar, algumas nem gostaria de lembrar.

Desde algumas engraçadas, como encontrar o banheiro ocupado por alguém cantando no chuveiro, entrar rapidamente e lembrar que não havia papel higiênico – cada um levava o seu próprio cada vez que tinha a intenção.

Aprendi muito, não foi tão bom assim, mas passou.

E passou em grande parte pelo apoio que recebi da pessoa que encontrei para viver ao meu lado até os dias de hoje.

Entre idas e vindas para Caxias do sul, conheci a Cinthya, minha esposa, e tenho certeza que só estou aqui pelo apoio dela, sozinho não teria conseguido.

Nesse contexto, ainda existia a necessidade de morar numa cidade estranha, estudar em tempo integral e se virar sem muita renda.

Naquela época não havia muita oferta de bolsas como hoje, e as que surgiam eram disputadas com sangue nos olhos e facas nos dentes.

Normalmente os mais abastados as conseguiam antes, pois tinham quase sempre uma melhor formação ou tinham informações mais uteis, de qualquer forma, sempre havia oportunidade para bolsas voluntarias não remuneradas obviamente.

Ainda assim, consegui varias vezes bolsas de monitoria que ajudavam bastante quem não tinha muito.

Também era permitido fazer estágios, alguns remunerados, mas num curso de tempo integral era bem complicado gerenciar isso.

Uma empresa privada de urgências da cidade, chamada Cruz Azul, permitia estágios de estudantes de medicina, era parecido com o SAMU de hoje em dia. E essa sim foi uma das melhores experiências que tive. Fazíamos plantões em duplas nessa instituição, dirigíamos ambulância, gerenciávamos a farmácia e atuávamos como auxiliares de enfermagem. Tudo praticamente estava nas nossas mãos, éramos apenas acadêmicos de medicina…

Lembro que na seleção eles perguntavam se tínhamos carteira de motorista, se sabíamos dirigir e conhecíamos a cidade. Minha resposta obviamente foi afirmativa…eu nem carteira tinha, sequer sabia sair da minha adorável moradia e chegar ao hospital, quanto mais dirigir em porto alegre, aliás eu pretendia pagar a auto escola com esse dinheiro…

Aprendi a ser (um pouco) responsável, organizado (nem tanto), a dirigir (mal) em porto alegre. Uma vez que a organização do local e das ambulâncias eram de nossa reponsabilidade, qualquer falta de material, mesmo combustível, se refletia num atendimento falho com consequências desastrosas.

Aprendi na prática como era a atender pessoas em qualquer local muito antes dos meus outros colegas de faculdade, a puncionar veias em qualquer local ou circunstancias, a entrar em casas ricas ou humildes e atender em silencio buscando a resolução dos problemas.

Foi isso que garantiu uma boa parte da renda e aprendizado prático para uma geração de estudantes de medicina da cidade; infelizmente isso não existe mais, a legislação não permite e o mundo foi ficando cada vez mais chato e sem graça.

Há, a Primeira aula, não disse nada sobre isso… a tão esperada e desejada aula de anatomia com o Professor Dr Alimena, uma das lendas no sul.

Daria para afirmar que era um sonho e um privilegio de muitos ter aula com aquele senhor não muito alto, encurvado e de cabelos brancos.

Normalmente na escola, na primeira aula ao término do verão, os alunos se reuniam euforicamente para contar suas experiências de férias, o reencontro feliz de todos brindado com a presença de novos colegas…SQN.

Ele entrou na sala, que se assemelhava a um anfiteatro, por uma das portas laterais.

Vestia um jaleco não muito branco, denunciando seu frequente contato com as mesas repletas de formol e anos de uso.

Entrou dizendo: meu nome é Alimena, responsável pela anatomia, vou dar a primeira aula sobre membro inferior, já batendo no quadro com sua lendária varinha de bambu…. E mal terminando seu nome, ordenou que passassem o primeiro slide, o primeiro da nossa longa vida acadêmica e começou freneticamente a aula, silenciando todos e mostrando como seria nossas vidas nos próximos 6 anos. Apos uma longa hora de fala ininterrupta, aonde não se ouvia a respiração de ninguém, apenas as folhas dos cadernos sendo manipulados rapidamente, ele terminou, para nosso alivio momentâneo…  Enquanto isso, saia pela outra porta dizendo: vou deixar agora vocês aos cuidados dos colegas mais velhos, no momento em que ele fechava a porta sem olhar para trás, aos gritos entravam pela outra os veteranos nos convidando para o trote, um dentre muitos… acho que foi a única vez que vi um esboço de sorriso na face do Dr Alimena…

Daniel Rech
CIRURGIÃO ONCOLOGICO
CRM 24166
RQE 19815 – 19814

https://www.instagram.com/dr.danielrech/

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